A
dor de cabeça é uma das queixas mais
freqüentes na prática médica
do dia-a-dia e constitui um importante problema
de saúde pública no mundo inteiro.
Estima-se que mais da metade da população
apresenta algum tipo de cefaléia em alguma
fase da vida. Esse tipo de queixa constitui uma
das causas mais freqüentes de absenteísmo,
de sorte que seu impacto socioeconômico é muito
grande.
Nas últimas décadas houve avanços significativos no estudo
das cefaléias, principalmente no que tange a sua sistematização,
aos mecanismos fisiopatológicos, fatores etiológicos e à abordagem
terapêutica. No presente, mais de 150 tipos diferentes de cefaléia
são reconhecidos e o capítulo do diagnóstico diferencial
dessa queixa é um dos mais ricos da medicina.
As cefaléias podem ser desdobradas em primárias e secundárias,
sendo a enxaqueca ( ou migrânea) uma das cefaléias primárias
mais freqüentes.
Conceito
A enxaqueca é uma
forma de cefaléia crônica primária
que pode ser definida como uma reação
neurovascular anormal que ocorre num organismo
geneticamente vulnerável e que se exterioriza,
clinicamente, por episódios recorrentes
de cefaléia e manifestações
associadas que geralmente dependem de fatores desencadeantes.
Essa definição, embora incompleta,
tem o mérito de incorporar dois fatores
fundamentais da enxaqueca: o endógeno(genético)
e o exógeno(ambiental). Quando ocorre a
conjugação desses fatores pode exteriorizar-se
a crise enxaquecosa. Embora a enxaqueca seja um
quadro crítico, em certos pacientes ela
pode ser mais abrangente configurando o chamado
episódio enxaquecoso que evolui em cinco
fases: sintomas premonitórios, aura, fase álgica(cefaléia
e manifestações associadas), resolução
da fase álgica e quadro pós-crítico
ou de recuperação. A crise simplesmente
resuma-se à aura, à fase álgica
e à fase de resolução.
O caráter genético da enxaqueca é inquestionável
embora em muitos casos seja ainda impreciso. O histórico familiar da
enxaqueca muitas vezes constitui um pré-requisito para o diagnóstico.
A freqüência do quadro enxaquecoso em algumas famílias sugere
uma transmissão do tipo dominante. A freqüência da enxaqueca
em gêmeos idênticos é maior do que em gêmeos fraternos.
Algumas formas de enxaqueca, como a enxaqueca hemiplégica familiar (EHF),
têm alguns aspectos genéticos já bem definidos. Em 50%
a 60% das famílias estão envolvidos um gene denominado CACNA
1 A ( alfa 1 A subunidade P/Q de um canal de cálcio voltagem dependente)
mapeado no cromossomo 19.
Em algumas doenças, como a MELAS e o CADASIL, nas quais o quadro enxaquecoso
pode estar associado, padrões genéticos bem definidos já estão
descritos.
Algumas formas de enxaqueca não têm um padrão genético
estabelecido e podem obedecer a mecanismos multifatoriais e dependem de uma
heterogeneidade genética.
Os fatores exógenos ou ambientais podem atuar como desencadeantes da
crise. Eles são diversificados e entre os principais podem ser mencionados:
distúrbios emocionais (ansiedade, depressão , irritabilidade...),
modificações do ciclo vigília-sono ( excesso ou privação
de sono), ingestão de determinados alimentos (chocolate, queijos maturados,
produtos defumados, uso de glutamato monossódico, como tempero, presença
d conservantes químicos em certos alimentos), ingestão de bebidas
alcoólicas ( principalmente vinho tinto), jejum prolongado, modificações
hormonais ( menstruação, uso de anticoncepcionais, reposição
hormonal), exposição a odores fortes e penetrantes(perfumes,
gasolina, creolina...), exposição a estímulos luminosos
intensos e/ou intermitentes, exercícios físicos intensos ou prática
esportiva, viagens aéreas longas, altitudes elevadas, movimentos de
aceleração da cabeça e outros tantos. A importância
de alguns desses fatores pode ser superestimada pelo paciente, razão
pela qual eles devem ser avaliados com muita prudência e juízo
crítico.
Idade, sexo
e freqüência
A enxaqueca costuma
ter início na infância, adolescência
ou nos primórdios da idade adulta, embora
possa ocorrer em períodos mais tardios da
vida. O pico de prevalência é atingido
entre os 30 e 45 anos. No período pré-pubertário
há ligeira predominância nos meninos,
entretanto, após esse período, há nítida
predominância no sexo feminino. A enxaqueca é altamente
prevalente e estima-se que atinja 12% da população,
sendo mais freqüente na mulher na razão
de 3:1.
Formas clínicas
A International Headache
Society (IHS) reconhece vários subtipos
de enxaqueca (Tabela 1), sendo os dois principais
a enxaqueca sem aura e a enxaqueca com aura.
Tabela 1. Formas Clínicas de Enxaqueca com o respectivo
CID-10-(Classificação Internacional de Doenças)- código etiológico para moléstias com cefaléia secundária:
[G43] Migrânea *
1.1 [G43.0] Migrânea sem aura
1.2 [G43.1] Migrânea com aura
1.2.1 [G43.10] Aura típica com cefaléia migranosa
1.2.2 [G43.10] Aura típica com cefaléia não migranosa
1.2.3 [G43.104] Aura típica sem cefaléia
1.2.4 [G43.105] Migrânea hemiplégica familiar (MHF)
1.2.5 [G43.105] Migrânea hemiplégica esporádica
1.2.6 [G43.103] Migrânea do tipo basilar
1.3 [G43.82] Síndromes periódicos da infância comumente precursores de migrânea
1.3.1 [G43.82] Vômitos cíclicos
1.3.2 [G43.820] Migrânea abdominal
1.3.3 [G43.821] Vertigem paroxística benigna da infância
1.4 [G43.81] Migrânea retiniana
1.5 [G43.3] Complicações da migrânea
1.5.1 [G43.3] Migrânea crônica
1.5.2 [G43.2] Estado de mal migranoso
1.5.3 [G43.3] Aura persistente sem infarto
1.5.4 [G43.3] Infarto migranoso
1.5.5 [G43.3] +[G40.x ou G41.x]
1.Convulsões deflagradas por migrânea
1.6 [G43.83] Provável migrânea
1.6.1 [G43.83] Provável migrânea sem aura
1.6.2 [G43.83] Provável migrânea com aura
1.6.5 [G43.83] Provável migrânea crônica
Quadro clínico
A enxaqueca sem aura é a
mais freqüente na prática clínica
e representa aproximadamente 70% das formas apresentadas.
Pode ser definida como cefaléia idiopática,
recorrente, manifestando-se por crises com duração
de 4 a 72 horas. Do ponto de vista clínico,
a dor costuma apresentar, localização
unilateral, qualidade pulsátil, intensidade
variável (fraca, moderada, forte, muito
forte), sendo exacerbada pelas atividades físicas
de rotina e costumam fazer parte da crise náusea
e/ou vômitos, fotofobia e fonofobia. Os critérios
para a caracterização da crise enxaquecosa
exigem a presença de pelo menos uma das
manifestações associadas (náusea,
vômito, fotofobia, fonofobia). O diagnóstico
de enxaqueca exige que o paciente tenha no mínimo,
cinco crises que preencham os critérios
considerados.
A enxaqueca com aura é menos freqüente e representa aproximadamente
de20% a 30% das formas clínicas de enxaqueca. Essa forma é caracterizada
pela presença de aura- exterioriza-se por manifestações
neurológicas reversíveis que sinalizam comprometimento do córtex
cerebral ou do tronco encefálico. A aura costuma durar de 5 a 20 minutos,
mas pode chegar a uma hora. A crise enxaquecosa tem início com a aura
(precedida ou não por uma fase prodrômica) e sucedida ou interpenetrada
pela fase álgica, que se instala nos minutos subseqüentes, geralmente
de 15 a 20 minutos após o início da aura. A aura pode ser visual
(a mais freqüente), sensitiva, motora ou ser traduzida por distúrbios
de linguagem. Com certa freqüência as auras são mistas.
Para se firmar o diagnóstico de enxaqueca com aura é preciso
que o paciente apresente, pelo menos, duas crises que preencham esses critérios.
Habitualmente, a fase álgica desse tipo de enxaqueca é mais curta:
4 a 6 horas, podendo, entretanto, ser prolongada e atingir 72 horas. Alguns
enxaquecosos podem apresentar as duas formas clínicas.
Diagnóstico
O diagnóstico
da enxaqueca é clínico, não
havendo marcadores biológicos para confirmá-lo.
Mesmo outros exames complementares (registros gráficos,
exames de imagem ou angiografia cerebral) não
contribuem para firmar o diagnóstico, sendo,
entretanto, úteis para o descarte de patologias
estruturais que provocam cefaléia semelhante
a enxaqueca.A avaliação de um paciente
com cefaléia depende fundamentalmente de
uma história cuidadosa e de exame clínico
pormenorizado portanto é imprescindível
a Anamnese , que é uma palavra derivada
do grego e significa nova lembrança .Descrita
assim por Alvan Feinstein : “ A Anamnese
, o procedimento mais sofisticado da medicina é uma
técnica de investigação extraordinária
, em pouquíssimas outras formas de pesquisa
científica o objeto observado fala.”
O diagnóstico diferencial da enxaqueca deve ser feito com outras cefaléias
primárias: cefaléia tipo tensional episódica, cefaléia
em salvas, hemicrania contínua ,etc. Particularmente na enxaqueca com
aura deve ser considerado o diagnóstico diferencial com manifestações
epilépticas e com os ataques isquêmicos transitórios.
Tratamento
O tratamento desse
tipo de cefaléia deve ser personalizado:
isso significa que devemos tratar o enxaquecoso
e não a enxaqueca. O manejo terapêutico
desse doente requer uma abordagem abrangente, levando
em conta seu perfil psicológico, seus hábitos
de vida, a presença de fatores desencadeantes,
o tipo de crise e a sua freqüência,
duração e intensidade. É importante
considerar no tratamento as medidas gerais e as
medidas farmacológicas. Deve-se explicar
ao paciente, em termos acessíveis, o que é a
enxaqueca e o que pode ser feita par tratá-la.
Evitar fatores desencadeantes, desde que detectados, é muito
importante no êxito do tratamento.
O tratamento farmacológico do enxaquecoso deve ser feito sempre por
médico, entretanto, somente 60% dos pacientes procuram auxílio
especializado e muitos apelam para a automedicação ou aceitam
a recomendação do balconista da farmácia ou de um vizinho
ou de um colega de trabalho, também sofredor do mesmo mal. Os riscos
desse comportamento são óbvios: efeitos adversos das drogas,
cefaléia crônica diária pelo uso regular de analgésicos
e anão realização do tratamento profilático.
O tratamento farmacológico pode ser desdobrado em sintomático
(tratamento da crise) e profilático.
O automanejo das crises, fracas ou moderadas é possível por meio
de certos procedimentos, entretanto, nas fortes ou muito fortes, prolongadas
ou de recorrência muito freqüente, o tratamento farmacológico
de impõe.
Os recursos farmacológicos incluem medicamentos não-específicos
(analgésicos comuns, analgésicos narcóticos, antiinflamatórios
não-esteroidais), medicamentos específicos (derivados ergóticos)
e medicamentos específicos e seletivos ( triptanos). Com exceção
dos triptanos, aos demais medicamentos devem se associar drogas adjuvantes
( metoclopramida, domperidona, cafeína), com o objetivo de combater
a náusea e o vômito e de melhorar a absorção gástrica.
O tratamento crítico da enxaqueca requer algumas orientações
que devem ser repassadas ao paciente. O uso de analgésico deve ser feito
no início da crise, comumente associado a drogas gastrocinéticas
e antieméticas. Se sintomas como náusea e/ou vômito são
de instalação precoce nas crises, devemos evitar as drogas de
apresentação oral e utilizar formas alternativas de apresentação
( supositório, spray nasal , ampolas, comprimidos sublinguais ou disco
liofilizado).
Nas formas fracas e moderadas dá-se preferência a analgésicos
comuns (ácidos acetilsalicílico, paracetamol, dipirona), aos
antiinflamatórios não-esteroidais (naproxeno sódico, ibuprofeno,
diclofenaco...)e ao isometepteno. Os analgésicos narcóticos (codeína,
derivados da morfina) devem ser evitados, mas poderão ser utilizados
na gestante enxaquecosa e como medicação de resgate. Nas crises
fortes ou muito fortes, ou quando o pico de dor é rapidamente alcançado,
deve-se lançar mão de drogas mais potentes no combate à dor
( derivados ergóticos, triptanos). Deve-se sempre respeitar as contra-indicações
aos medicamentos antienxaquecosos.
O tratamento profilático deve ser feito tendo em mira vários
objetivos: aliviar o paciente do sofrimento e com isso melhorar a sua qualidade
de vida; evitar a sua incapacidade temporária (física e intelectiva)
e evitar o uso prolongado e, às vezes, abusivo de analgésicos,
que além de efeitos adversos (potencialmente perigosos) podem induzir
um quadro de cefaléia crônica diária.
Os critérios fundamentais para a instituição do tratamento
profilático são de três ordens: freqüência,
intensidade e duração das crises. A conduta preconizada para
iniciar esse tipo de tratamento é a ocorrência de, pelo menos,
uma a duas crises/mês, entretanto, crises de longa duração
( dois a três dias) e de grande intensidade podem justificar um tratamento
de manutenção, mesmo com crises mais espaçadas.
As drogas profiláticas de primeira escolha são os bloqueadores
de canal de cálcio, os betabloqueadores e os antidepressivos tricíclicos;
também são eficazes o maleato de metisergida, o pizotifeno e
o divalproato de sódio e o Topiramato. Das cinco classes dos bloqueadores de canal
de cálcio, o único comprovadamente eficaz é a flunarizina
e dos bloqueadores beta- adrenérgicos, o mais eficaz é o propranolol.
Os inibidores de MAO são também eficazes, mas, em virtude de
seus efeitos colaterais e interações medicamentosas e/ou alimentares,
são pouco usados. Outras drogas são de baixa eficácia
ou de eficácia duvidosa (verapamil, fluoxetina, ciproeptadina, gabapentina,
etc.). O toxina botulínica vem sendo avaliada no tratamento
profilático da enxaqueca.
O tratamento profilático deve ser feito, na medida do possível,
em regime de monoterapia e excepcionalmente com drogas associadas. A estratégia é tratar
o paciente de modo intermitente, com períodos de “cura” de
6 a 12 meses ou mais.
Alerta.:As
informações contidas neste site não
substituem o aconselhamento médico. Sempre
procure seu médico antes de iniciar qualquer
tratamento ou quando tiver qualquer dúvida
acerca de uma condição clínica.
Nenhuma das informações disponibilizadas
por este serviço tem a finalidade da realização
de diagnósticos ou orientação
de tratamentos.
Fonte Livro:
“Cefaléias Primárias: Aspectos
Clínicos e Terapêuticos”.Fernando
Ortiz;Edgard Raffaelli Jr e col.. ( 2ª Edição).
São Paulo: Editora Zeppelini, 2002.
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